Comecei a escrever um romance em janeiro de 2022 e parei depois de cinquenta páginas. Parei porque demandas se acumularam e não consegui equilibrar tantos pratos. Tive medo de derrubar tudo, ter que juntar os cacos e gastar tubos e mais tubos de cola. Desde então, publiquei dois livros de contos, obras que concentraram muito trabalho em suas diversas etapas (escrever-reescrever-editar-revisar-diagramar-divulgar). Esses são os verbos que essencialmente “sustentam” uma obra.
O segundo livro (Tempos íntimos) foi ainda mais desafiador. Contemplado num edital do Governo de Mato Grosso para publicação literária, ele exigiu que a Larissa “artista” desenvolvesse uma nova faceta, a de “produtora cultural”. Ter um projeto premiado em edital faz com que você precise aprender uma série de procedimentos burocráticos para ter a prestação de contas aprovada e não se meter em apuros.
Entre as etapas de realização do projeto (com cronogramas documentados, prazos a cumprir), percebi com clareza a arte convertida em trabalho. Ali não se tratava de escrever somente nos dias em que eu quisesse ou quando me sentisse inspirada a isso. Se fosse assim, havia o risco de desandar, perder o ponto.
A vida não parou enquanto eu e minhas parceiras nos dedicávamos a essa empreitada. Eu sofri um aborto; meses depois, precisei passar por uma cirurgia para retirada da tireoide, por conta de um tumor. A ilustradora da obra, Dani Dias, viveu uma saga até o diagnóstico do seu filho, Yuri, acometido pela INAD (Distrofia Neuroaxonal Infantil), doença raríssima. Eu me casei na semana em que o livro foi lançado, demorei semanas para esvaziar caixas e concluir a mudança.
Vontade de abandonar não faltou, mas finalizar o projeto era resistir às pancadas mais doloridas que vivemos e, de alguma forma, voltar a nós mesmas. “Tempos íntimos” se tornou, naquele período, nossa profissão de fé e, ainda assim, não deixou de ser trabalho. Paramos algumas vezes, respiramos fundo, buscamos os acolhimentos necessários e voltamos, movidas pelo poder das retomadas.
, pouco antes do Natal. Decidi que seria a última leitura de 2024. A Miranda é escritora e cineasta. Para ela, escrever é trabalho.
A autora precisava entregar um roteiro, mas estava travada, não conseguia avançar. Isso a deixava angustiada e fazia com que as idas ao escritório virassem tortura: ela não gostava de nada e buscava inspiração para retomar o projeto. Então, visualizou o jornal (um pennysaver) em cima da mesa, repleto de anúncios de produtos usados. Ao folhear a publicação, nasceu a ideia que deu origem ao livro (O escolhido foi você) e ajudou Miranda a concluir o roteiro.
O ano era 2009. Ela selecionava o anúncio, ligava para o telefone indicado e demonstrava interesse no produto. Na sequência, falava de seu trabalho, “gostaria de entrevistar você, pago por isso”. Alguns topavam, outros não. “O escolhido foi você” reúne dez entrevistas realizadas por Miranda naquele período, intercaladas com reflexões sobre escrita, cinema, casamento, família, a vida na Califórnia, a crise financeira de 2008.
Minhas experiências como escritora e jornalista conversaram com os relatos da Miranda e me lembrei das insistências que não valem a pena. Quem trabalha escrevendo sabe, quando algo não flui, é melhor mudar o foco, buscar outros espaços para se nutrir, deixar o texto em descanso. Ouvir pessoas, conhecer suas histórias, suas manias ou simplesmente observá-las é o caminho apontado pela Miranda para inspirar as retomadas e, particularmente, é o que mais me agrada.
De volta ao romance: Três anos depois, estou de volta ao romance que comecei a escrever em 2022. Me dedico a ele um pouquinho, todos os dias, desde a semana passada, sem a urgência de prazos e outras cobranças. Há o compromisso e a disciplina comigo, o desejo de ser fiel ao que me faz feliz e preenche os dias de sentido.
Nesses três anos, ouvi tanta gente, passei por lugares novos, voltei a lugares conhecidos. Li muito, acessei universos literários criados por gente que admiro e me serve de inspiração, terminei uma especialização em escrita e criação, botei dois livros no mundo e aprendi um bocado com eles e com os leitores.
Escrever é meu trabalho e minha arte. Às vezes, gosto de fingir que é simples e nada custa, mas o fingimento dura pouco. Sentar para escrever, mesmo que seja por dez minutos, exige abdicar de outros afazeres em nome da escolha mais importante que posso bancar: eu mesma.
Yuri pela cura: Como expliquei acima, o Yuri, filho da Dani Dias (minha amiga e ilustradora de Tempos Íntimos), foi diagnosticado com Distrofia Neuroaxonal Infantil (INAD) e a família tem realizado ações para levantar recursos em prol do tratamento dele. Em breve, eles vão sortear um celular. Clica aqui para colaborar!
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